O bairrismo do Rio Grande do Sul e o meu não pertencimento.


Eu estava escovando os dentes essa manhã quando do nada veio uma lembrança da infância na minha cabeça. Acho que isso é normal, comigo acontece muito, lembranças que vêm do nada totalmente desconectadas de qualquer coisa que possa ocupar espaço na minha mente naquele momento.
Eu nasci em Porto Alegre e lá vivi 15 anos da minha vida. Minha lembrança específica essa manhã foi um dia, eu devia ter uns 13 anos, quando chegava ao Clube Sogipa, muito tradicional na cidade, para algum evento, acho que era um aniversário de algum colega de colégio. Eu já tinha ido ao Sogipa, não era o meu clube, mas já tinha ido por alguma razão. O meu clube era algo mais classe média, eu ia no Círculo Militar de POA onde meu avô pagava mensalidade para todos da família. Ninguém ia lá, só nós mesmo!
O ponto central dessa minha lembrança trouxe à tona meu sentimento de não pertencimento daquela época. Lembro de estar chegando ali, ver meus amiguinhos, todos muito felizes correndo, se divertindo, todos acostumados com aquele ambiente, naquele lugar. Mas eu não. Eu não me sentia confortável ali e quase em nenhum lugar naquela cidade. Eu me sentia extremamente desconectada de tudo e de todos, eu não reconhecia aqueles hábitos, aqueles lugares, aquelas pessoas, me sentia extremamente fora de lugar e com um forte sentimento que levava a buscar reconexão com algum lugar distante, que eu não sabia bem onde era, mas sabia que era bem longe dali.
Era como se eu estivesse sendo espectadora de uma vida que não me pertencia.
Um dos poucos lugares onde me sentia mais conectada com a minha vida era no meu colégio. Lá eu tinha espaço para fazer o que eu mais amava na vida, aprender, ampliar meus horizontes, onde eu podia criar, escrever.


Mil novecentos e noventa e nove :)

Também me sentia bem em livrarias, nas tradicionais Feiras do Livro de Porto Alegre, caminhando pelo centro (ahh eu amo aquele centro!) em alguns museus e cafés. Nesses lugares eu encontrava algo como pontes, pontes que me levavam para outras realidades, outras possibilidades, pontes que eu sabia que um dia me levariam a meu futuro, quando eu finalmente chegaria nesse lugar onde eu me sentiria presente e pertencente.
Desesperadamente eu buscava essas pontes, tamanha era minha sensação de não pertencer. Isso é horrível, sentir que você nasceu no lugar errado, sentir que a sua vida não tem um sentido como a das outras pessoas. A maioria dos meus colegas de colégio continuam morando lá, continuam com os mesmos amigos, no mesmo endereço, alguns tem o mesmo número de celular, o mesmo namorad@. Só de pensar numa vida lá, em voltar a frequentar os mesmos lugares, as mesmas pessoas, me dá falta de ar. Realmente é como tirar o peixe da água e colocá-lo num parquinho. Sinto que morro por dentro, pouco a pouco.
Olhando pra trás sinto orgulho por ter seguido as pistas que me levaram a essas pontes que realmente existiam. Não era coisa da minha imaginação. Eu segui as pistas que dentro do meu coração apontavam pra essa vida onde eu me sinto plena e pertencente, onde eu me sinto dona da minha própria caravela, onde eu posso respirar com tranquilidade.
Tenho certeza que muito desse sentimento tem a ver com a cultura gaúcha. Nossa história é linda, nossas mulheres são fortes, (salve Anita Garibaldi! — que era catarinense by the way) nossas tradições nos dão alento. Eu amo e admiro muito tudo isso. Mas ao mesmo tempo eu nunca vi povo mais bairrista que o nosso. Nos meus 13 anos de colégio eu lembro de conhecer apenas 3 pessoas de fora do estado na minha classe, o Pedro, de São Paulo, o Lucas de Salvador e a Paula, de Pouso Alegre em Minas. Ninguém ligava pra eles, verdade seja dita. As pessoas viviam nas suas panelinhas (como chamamos esses grupinhos de amigos fechados e chatos pra car**lho), e não estavam nem aí para quem era de fora da sua bolha. A pessoa que tinha uma aparência diferente, um sotaque diferente, que era diferente, não tinha valor naquele mundo, entre os meus colegas. É sério, eu achava isso ridículo e vi muito bullying, sofri um pouco de bullying também, porque eu realmente não me encaixava nesse modo padronizado de ser do gaúcho típico porto alegrense, morador do Moinhos de Vento, frequentador da Padre Chagas, néam gurias.
Eu não era essa gaúcha porto alegrense típica, minha família TODA é do sul mas pela carreira militar do meu avô eles moraram em todo o país, são pessoas mais cabeça aberta, que foram “estrangeiros” em outros estados desse país continental. Isso dá outra perspectiva para uma pessoa, cria empatia dentro delas. Meu avô fala você, por exemplo, quando atende a ligação de um desconhecido. Isso é quase uma heresia no sul do mundo!
Eu AMAVA conversar com esses coleguinhas que não eram de lá, era como um sopro de realidade, de novos ares, adorava ver que existiam outros sotaques e que mesmo assim todos falávamos português. A maioria das pessoas não fazia o MÍNIMO de esforço em acolher essas crianças, de querer saber algo sobre eles ou de gentilmente dizer, adoro o jeito como tu fala “caderno”, sei lá, seja legal amiguito, ao menos tente!
Eu via que essas pessoas não conseguiam se adaptar muito ao RS, era duro. Escutei de muita gente, de várias partes do Brasil, sobre esse dilema bairrista e estúpido que o meu estado conserva (parece que com orgulho até). Fico com vergonha e peço desculpas, sei que nem todos são assim. Até hoje quando vejo os bullers por aí eu me pergunto se continuam sendo esse tipo de pessoa, só que na versão adulta. Eu tenho cá umas respostas, mas não vem ao caso…
É óbvio que uma pessoa como eu não iria criar raízes nesse ambiente fechado e conservador. É óbvio. Minha alma pedia por mais, mais diversidade, mais complexidade, mais, muito mais.
Fiz vestibular para a federal em Florianópolis porque queria sair desse grande bairro. Muita gente não entendia, porque o RS era melhor em tudo. Mas eu fui mesmo contra críticas e julgamentos. Essa era a primeira e mais importante ponte que eu tinha que cruzar. Minha intuição cuidou de mim e me trouxe até aqui, até esse lugar, que hoje eu chamo de mundo. Nesse lugar hoje me sinto plena, pertencente e confiante, levando comigo o melhor das minhas raízes e enterrando aquele lado mais escuro. Entendo que realmente o RS não meu lugar para florescer, minhas sementes precisavam de novos ares, mais bagunçados, misturados e acolhedores.
Como nós gaúchos dizemos, não tá morto quem pelea… e nem quem segue a intuição da alma.
E toda essa reflexão veio por conta dessa lembrança. A mente prega peças mesmo…

Andréia Simas
11 novembro 2019

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