Crônica de uma vida com um cachorro (e o dilema da 'mãe de pet')

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Três dias atrás foi Dia das Mães. As redes sociais estavam inundadas de declarações de amor à figura mais importante da espécie humana e também das não humanas, a mãe. A mãe traz a vida ao mundo, gera, cuida, ama incondicionalmente (nem sempre, mãe também erra e não quero contribuir pra imagem de santificação da mãe). Está claro que sem a mulher não existe vida, é mágico. Mãe não é somente quem gera dentro do útero, mãe vai mais além do corpo físico, é um estado emocional e de espírito que se reflete em ações de proteção e amor profundo. Extendo o mesmo elogio aos pais, sem eles não há vida. O sagrado masculino e o sagrado feminino. Ambos importantes, um fundamental.

Eis que são 8 da manhã e ela vem pra minha cama, se organiza numa posição gostosa e coloca a cabecinha no meu travesseiro. Me olha nos olhos profundamente, me dá um beijinho e encosta a cabeça. Ficamos ali uns minutos, passando calorzinho, escutando o respirar, dando protagonismo ao carinho nesse momento tão importante do dia. 

Eu to falando do meu cachorro. Sim. Dela, da Moca. Quem me conhece sabe que ela me segue onde eu for e que ela domina meus stories no Instagram (a cada 4 histórias postadas, 2 são dela). Quem conhece a minha casa também sabe que tudo tem o seu lugar, exceto os brinquedos dela, ela pode deixar tudo espalhado. E quem já sentou no meu sofá provavalmente já saiu com pelo grudado na calça. Aliás, quem já observou minhas roupas já notou que elas têm sempre uns pelinhos grudados. 




Eu me tornei tudo o que eu recriminava, tudo o que eu achava, sei lá, um saco, uma perda de tempo. Antigamente eu via as pessoas recolhendo o excremento dos seus cachorros na rua e eu falava "nossa, jamais faria isso, que eca!" Eu via as pessoas nas pet shops, gastando e gastando, e eu pensava, "prefiro gastar comigo", eu via as pessoas comprando roupinhas e enfeites pra cabeça e pensava "que absurdo, é um animal, não um ser humano, coitado do bicho." E eu continuo pensando igual nesse último caso, por mais amor que eles tenham pra dar eles continuam sendo bichos, Moca só usa roupinha quando chove, ela tem uma capa de chuva muito útil e até bem fashion! (rsrs) E sobre a questão do pelo, nossaaaa! Eu detestava, não podia imaginar viver uma vida com pelo em todo canto e principalmente nas minhas roupas, isso me incomodava tanto que me dava angústia. 

Eu nunca tive cachorro na minha vida. Minha história com esse animal é bem peculiar e envolve traumas. Eis que eu tinha uns 3 anos de idade, estava toda lindinha indo pro aniversário de alguma prima, quando descemos do carro numa garagem escura e cheia de eco, sai da porta do prédio um cachorro louco, pequeno mas grande pra uma mini criança, estridentemente correndo na minha direção e latindo como um pequeno monstro. Ele me assustou muito. Chorei, minha mãe me pegou no colo. Meu tio tirou uma foto, poxa tio... rs. 

Eu passei ANOS da minha vida com MUITO medo de cachorro. Era tanto que quando eu ia visitar minha madrinha ela tinha que esconder o Pimpo no quarto, um Poodle branquinho e brincalhão. O Pimpo já morreu, claro, mas até hoje eu penso nele e peço perdão por ter mandado ele pro confinamento só porque "eu tava lá". Inclusive já falei sobre isso com a minha madrinha, ela riu, eu também. Mas no fundo eu tenho uma tristezinha porque eu gostaria que minha mãe ou avós tivessem usado alguma estratégia pra tirar esse medo de mim. 

Esse medo era um saco. Na frente do meu prédio tinha, ainda tem, um parquinho super legal cheio de briquedos, crianças e, claro, cachorros. Quando eu tava lá brincando e via um cachorro se aproximar eu ia pro topo do trepa-trepa até o bicho sair ou se afastar. Ninguém me confrontou pra dizer, já, chega dessa bobagem, vamos lá conhecer e enfrentar seu medo. Não, ninguém disse isso e eu passei toda a minha infância sem ter contato com cachorros. 

Além da rinite alérgica que eu tinha, porque os médicos diziam que eu não poderia ter um bichinho. Eu nunca nem pedi um. Credo. 

O tempo passou e não sei como eu perdi o medo, comecei a gostar, mas eles lá eu cá. Um ex namorado tinha uma cadelinha muito fofa e especial, a gente passeava com ela mas eu me recusava grosseiramente a recolher o coco. E quando ela chegava perto de mim no sofá eu começava a espirrar. Minha melhor amiga da faculdade também tinha um cachorro, fofinho, pequeno, mas o Ringo era territorialista e um dia quando a porta do elevador abriu ele entrou como um ninja e mordeu minha perna. Eu só pensava, "fala sério".

Quando eu me mudei pra Colombia algo mudou e eu comecei a AMAR cachorros. Fiz minha mãe conseguir um cachorro antes de eu vir com a intenção de me substituir de certa forma rsrs e dar um propósito pra ela que adora pensar que alguém depende ou precisa dela. Quando eu vi o Tchai no meio de outros filhotes ele me saltou aos olhos, pediu pra sair, eu agarrei ele no colo como quem tem muito jeito, ele deitou nas minhas pernas e ficou paradinho, quietinho. Ali, naquele momento, meu mundo mudou, meu mundo melhorou, já nada importava, o cheiro de filhote fedido, pelos, mordidas e lambidas. Ele ia pra casa com a gente. E ele foi. Meu primeiro amor canino que eu tive que deixar pra trás no Brasil. Aliás ele sempre escolheu a minha mãe como tutora principal.
No primeiro dia chegamos em casa e eu fui dar banho nele, no box. Nunca tinha dado banho nem em um hamster e me vi ali, toda cheia de jeitos, falando com vozinha meiga pro filhote não se assustar mais. Entreguei ele enrolado na toalha pra minha mãe secar. Tirei uma foto. Parecia um bebê. Ali eles se apaixonaram e se conectaram pra sempre, e eu sempre fui a mana chata que me dá banho. Ele também me permitiu realizar um sonho que eu tinha, chamar um cachorro de Tchaikosvky. Sei lá porque, eu adorava pronunciar esse nome (e escutar Tchaikosvky). Assim ele virou o Tchai. 

Bom, aqui, depois de ter vindo e voltado ao Brasil, e depois vindo de novo pro mestrado, adotei a Moca. Aqui tive o chamado de "preciso de um filhote pra me acompanhar e preencher o vazio da minha vida". Muita gente julga dizendo que as pessoas tentam preencher vazios adotando cachorros. GENTE, ISSO É OBVIO. Tem gente que faz pior, pari um filho pra preencher seus vazios. E o filho um dia se torna uma pessoa, um indíviduo, quem não tem nada a ver com os problemas mal resolvidos de pais que nunca quiseram fazer terapia. Eu prefiro tapar buracos e preencher certos vazios com a alegria e o aconchego de um cachorro. Tirei ela da rua e dei um lar. Quer melhor recompensa? A fidelidade de um animalzinho indefeso jogado numa caixa no meio de uma estrada, a Deus dará. 

E Deus deu. Alguém as levou pra uma Fundação. Moca e sus hermanitas. Uma fundação sem recursos, desorganizada, nas montanhas da sabana de Bogotá, lugar frio pra caramba. Em média eles tem 300 cachorros. É um horror mas é a única forma de dar algo de comer e oferecer, bem ou mal, um teto e tratar de conseguir quem adote. Um belo domingo de sol eu fui almoçar no lindo bairro de Usaquén e passei pela feirinha de adoção pra doar algo, pensando no meu Tchai cheio do conforto e nesses outros bichinhos sem família, quando vejo ela, a loirinha de olhos azuis com expressão triste de cortar o coração e qualquer órgão que você tenha por dentro. 

Eu fui na direção dela, pedi pra pegar no colo, perguntei da onde vinha, escutei a história triste enquanto ela se aconchegava no meu colo. Acabou pra mim. Eu nem almocei. Ali mesmo fiz a papelada pra adoção e sai de lá com ela no colo direto pra vet. Minha vida tinha mudado pra sempre. Eu não tinha nem dinheiro pra isso. Que loucura. Que desespero. Que medo. Que ternura. Que amor tão louco eu senti por ela. Sim, amor. 

Virei mãe de pet. Será??





A Moca claramente não é minha filha. Mas eu digo, vem cá com a mamãe. Ou digo, mamãe já vai te dar comida. Ou digo, vamos passear com a mamãe? É inevitável. E daí? Uma vez li uma pesquisa científica que dizia que os humanos, depois de um certo tempo, passavam a ver os seus cachorros, principalmente quando são filhotes, como suas crias. Confesso que eu pensei "WTF". Mas gente, como vou brigar com o meu cérebro. Meu cérebro realmente enxerga ela como uma cria. É louco e surreal. Sempre vou cuidar dela e proteger. Se ela se machuca ou chora meu coração dá um pulinho. É real. E minha terapeuta disse tá tudo bem. Nem tudo precisa ser problematizado, digo eu. 

Todo esse amorzinho NÃO ME FAZ MÃE, at all. Minha intenção em adotar também não foi essa, em suprir a vontade de ser mãe, ou em treinar pra ser. God, no!! Ter um pet nos mostra um 10% do que é ser mãe talvez. É um treinamento de certa forma, pode ser. Um ensaio, maybe. Principalmente se você quer fazer isso em casal, dá pra testar um pouco a capacidade do outro em dividir tarefas e se responsabilizar por algo tão importante como a vida de um animal. Dá pra testar ou pra se iludir, você escolhe.


Minha pseudo filha é bem diferente de um mini humano. Eu posso viajar e deixar meu cachorro na casa de um amigo ou em um hotel. Quando eu trabalhava fora de casa e tinha que passar o dia na rua eu podia mandar ela pra um 'escolinha' de cachorros. Um filho não. Entende? Ela não precisa nem nunca precisou de mim pra nada, eu sempre fui substituível, qualquer um pode dar comida e levar pra passear. Eu sinto falta dela quando viajo, uma vez passei um mês e meio longe dela, fiquei triste, senti falta, mas com um filho pequeno não dá! É absolutamente INCOMPARÁVEL. 

O dilema da mãe de pet é interminável e a cada dia das mães ele volta firme e forte. Eu não faço post de dia das mães com a Moca. Acho bobo. Mas eu ganho os parabéns de algumas pessoas, ganhei um chocolate da vizinha que também tem cachorro e um abraço do papai da Moca. Sim ela tem um papai que a ama como um maluco e que criou um vínculo absurdamente profundo com ela também. Ela inundou a minha vida de amor e logo nós duas inundamos a dele. Ele diz que me conheceu em combo. E assim foi. E é o máximo. 

O ponto aqui é que não dá pra humanizar o cachorro a esse ponto. E também não podemos querer colocar a mesma etiqueta em todas as mulheres. Me explico, "ah eu não tive filhos mas sou mãe da minha cachorrinha, do meu gato, das minhas plantas, da minha tartaruga...." Faz o favor né. Por que sempre temos que ser mães? E se a gente não quiser? Ninguém é obrigada.

O dilema da mãe de pet tá justamente nesse vazio que as mulheres buscam suprir através dos pets. Não é exatamente um vazio... na verdade o termo correto é a maternidade compulsória. Eu cresci escutando frases como "eu quero ter netos hein", ou "pelo menos uns dois pra se fazerem companhia", "mulher tem prazo de validade, até os 32 no máximo" e a pior delas, "uma mulher sem filhos não é mulher". SO COR RO!! 
Como faz pra ressetar esse chip? Mesmo quando as mulheres decidem não ter filhos elas precisam tapar esse buraco imposto pela S.A. com algo, um animalzinho ou plantas... E não! Não tá certo! Ninguém precisa ser mãe só pra tirar algo da lista. Na verdade dessa ideia pode sair uma relação ultra mega tóxica entre uma mãe e um filho, ninguém pode ser obrigado a se sacrificar a esse ponto. Uma mulher que pra se tornar mãe precisa se ferir no mais íntimo do seu ser, abdicando de tudo em nome de seguir um script que ela não escreveu, não pode "dar bom". Por isso eu me uno ao time das "mãe de pet não é mãe". 

É um alívio poder falar sobre isso abertamente. Demorei 27 anos pra reconhecer que há uma grande possibilidade de que eu não queira cumprir esse papel. Finalmente quando mais me conectei com o sagrado feminino entendi que nem tudo são flores, que maternar não é algo totalmente divino. Tem muito perrengue e abdicação, e você precisa estar CERTA de que quer enfrentar esse tipo de problema. A vida é isso, eu escolho minhas batalhas. Tem umas que eu passo, outras eu pego. 

Fala sério, olha o mundo. Quem gostaria de trazer um pedaço de si misturado com outro alguém (que pra mim precisa ser O CARA, alguém com dom maternal comprovado - isso já encontrei, amém! mas isso não define as coisas ainda), quem gostaria de experimentar o amor mais profundo e buscar preencher seus vazios emocionais com um filho humano nesse mundo absurdo em que vivemos, quem gostaria de passar noites e noites em claro. Quem vai trabalhar e produzir por mim? Vai continuar existindo essa coisa chamada licença maternidade? Aparentemente o mundo quer tentar tirar todos os nossos direitos mais básicos. 
O mundo realmente ficou absurdo e insusntentável. Daqui uns anos eu tomo a decisão final, mas o não tá ficando cada vez mais forte. Digamos que eu decida que não, não quero, e nunca tenha filhos. Ok. Serei feliz igual (ou talvez até mais rs). Mas nem por isso vou me DESCULPAR pelo fato de não ser ou não querer ser mãe usando a típica "JÁ SOU MÃE DE PET". Esse imaginário opressor que não sai das nossas cabeças é uma praga. Mãe é quem quer ser. Assim como pai. Se eles sempre puderam escolher, por que nós não? 

O fato é, seja o que eu decidir, vai ser racional e pensado, pra isso eu faço terapia, pra isso eu planejo minha vida, pra isso eu busco o auto conhecimento e a reflexão.

Eu vou continuar falando com a Moca, porque sim, nos comunicamos melhor que muitos humanos, e eu vou continuar dizendo "vem cá com a mamãe".  E eu vou continuar dizendo isso porque nasce em mim, é natural, adoro dizer isso. Assim como seu papai também se autodenomina papai. Eu não carrego o peso da mãe nessa brincadeira de ter cachorro, até porque Moca é responsabilidade dos dois, apesar de eu ter adotado ela antes, nós cuidamos dela de maneira absolutamente igual. Na verdade o papai teve que cuidar até mais por conta das frequentes viagens da mamãe. Levando ela pro trabalho, cuidando dela de manhã à noite, solito. Simplesmente pelo fato de que, é uma vidinha que precisa de cuidados. Nada mais... e porque eles adoram dormir juntos quando eu não estou.

Mas ela segue sendo um cachorro. Esse cachorro me ensinou e me ensina diariamente sobre a vida. Foi corajoso adotá-la e me jogar nessa jornada de dividir minha vida com um cachorro (e todas as limitações que isso traz) sabendo que ela vai morrer em uns 10 ou 12 anos. Que no máximo vai viver até os 15. Ela é parte do meu lar e de quem eu sou. É parte da minha rotina porque eu sou obrigada a dedicar mínimo 2h do meu dia pra ela, pra levar ela pra passear, pra dar comida, pra brincar. Em uma vida de expatriada, migrante, foi até bem corajoso, é corajoso. E lindo também. Minha rotina tem muito mais amor e ternura, e os pelos, nem vejo mais. 

Por mais que eu ame esse cachorro loucamente, eu ainda trato ela como um cachorro a maior parte do tempo e eu ainda mantenho a sanidade de que, não, ela não é minha filha. E por quê? Porque eu tenho, nesse momento, zero vontade de ter uma ou um! Porque o vazio que ela preenche é o vazio da minha criança ferida, não o de uma mulher frustrada por não se sentir completa. Porque eu tenho zero necessidade de cumprir o papel de mãe, porque eu entendi que ser mulher vai muito mais além de ter um útero e querer usá-lo para trazer mais uma boca pra alimentar nesse mundo que já ta cheio demais. 
Eu tenho um cachorro porque ter um cachorro é o máximo, se for adotado então, é a certeza de uma vida cheia de risos, trapalhadas e olhares profundos de um agradecimento eterno. Ela me salva da mediocridade diariamente. 

Agora vou ter que terminar o texto porque já são 9h15am e tem uma 'menina' aqui do meu lado pedindo pra sair. 

Adiós!


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