Sobre desapegos, ansiedade e ‘desrotina’. Reflexões do primeiro ano de nomadismo.

Há  quase um ano atrás eu me perguntava o que o apego estava me impedindo de viver. Comecei a ter coragem de ir fundo nessa pergunta e tentar visualizar uma vida com menos amarras, menos objetos, menos raízes e mais asas. Essa questão surgiu quando eu estava em Palomino, La Guajira, pequeno povoado paradisíaco na costa caribe da Colômbia. Eu não conseguia tirar essa questão da cabeça. 

Eu nas minhas reflexões na hora do almoço no meu escritório na praia em Palomino, outubro de 2020!



Essa viagem para Palomino foi a primeira logo depois de longos 6 meses de um lockdown disciplinado em Medellín, cidade onde estávamos vivendo num apartamento grande, ensolarado, num bairro tranquilo e verde, meu primeiro apartamento com cara de casa, biblioteca e quadros pendurados na parede.

Eu estava numa zona de conforto, apesar do desconforto infernal da pandemia e da perda de controle sobre quase tudo. Estávamos vivendo uma vidinha 'redonda', organizada, tranquila. A vista linda das janelas grandes do nosso edifício antigo era inspiradora, meu olhar se perdia vendo o outro lado do vale e os fins de tarde laranjas. Apesar desse aparente conforto, minha ansiedade tinha aumentado desde que me mudei pra Medellín e comecei essa vida mais estável ao lado do melhor companheiro do mundo. Eu não entendia. Nunca tinha vivido tão bem como estava vivendo, tinha encontrado uma certa estabilidade mas ela estava ali, crescendo a cada dia, a velha ansiedade.

Numa dessas tardes de sol laranja, lembro perfeitamente de ter sentido que o fim daquele ciclo se aproximava. Eu tava de saco cheio daquela rotina perfeitinha e previsível. E foi em Palomino que pude confirmar, era isso. Eu não iria deixar o medo da escassez reger minha vida, eu queria abrir espaço para me maravilhar com a vida e suas fontes de abundância.


Registro desses momentos de primavera da revolução interna!


Em Outubro de 2020 tomamos a decisão, deixar o apartamento, vender nossas coisas, guardar algumas caixas num depósito em Bogotá e se desprender de ter um endereço fixo. 

Computador, internet, nossa fiel companheira canina, uma mala pra cada um e a nossa própria companhia. Esses seriam os nossos principais bens.

 E são. 

          No território dos nômades, Selina Lapa.
                                                       


Em abril de 2021 nossa jornada nômade começa pela cidade que já era minha, Bogotá. Com todas as limitações da pandemia, nosso nomadismo iniciou de um jeitinho bem tímido. Passamos por Bogotá, Medellín outra vez e costa Caribe. Mas apesar desses desafios pandêmicos, tudo fluiu e acabamos migrando de casa em casa de vários amigos que estavam fora e nos ofereciam a hospedagem na faixa ou cobrando apenas as continhas da casa. De abril até outubro de 2021 vivemos contando as horas pra nossa segunda de vacina pra poder comprar passagens pra uma temporada no Brasil. 

Nesse tempinho de nomadismo na Colômbia antes do Brasil deu tempo da gente economizar bastante, organizar bem nossas coisas no depósito, deixar mais bagunça pra trás e ir pegando o jeito do minimalismo. Com a segunda dose no braço e passagens compradas, Brasil era nosso destino. Depois de 5 anos morando fora, tudo o que eu precisava era de brasilidade. 

De outubro 2021 até janeiro de 2022 passamos por São Paulo (SP), Santa Rita do Sapucaí (MG), Florianópolis (SC), Porto Alegre (RS) e Rio de Janeiro (RJ). Em cada lugar vivimos experiências únicas, vai ficar pra um futuro texto.

Vamos aos tópicos das reflexões então:

1. DESAPEGOS

Essa parte é a mais difícil no começo. Depois fica cada vez mais fácil. 
Desde nossa saída do apartamento de Medellín a quantidade de roupas, acessórios, utensílios de cozinha e bobagenszinhas que ficaram pra trás não tem nem nome! Quantidades imensas de coisas foram doadas, jogadas fora, vendidas. Foi trabalhoso mas a sensação de alívio, de frescor, não tem preço. 

Obviamente não foi assim tão fácil, chegamos em Bogotá com mil coisas. Ainda tínhamos um monitor, uma mala extra e vários casacos de inverno. Pouco a pouco e com a ajuda de amigos e do depósito, organizamos melhor as coisas e guardamos as caixas e as malas com coisas que iriamos guardar e ajustamos a quantidade de coisas que poderíamos levar nas nossas novas malas de viajeros

Hoje em dia, depois de 10 meses, ainda tenho momentos em que sinto falta de ter mais peças de roupa e sapatos ou de poder carregar alguns cosméticos e coisinhas que gostamos de ter. Sinto a falta mas logo passa porque observo. Paro, observo e chego na mesma conclusão todas as vezes. Sempre acabo usando as mesmas roupas, tenho meus sapatos preferidos comigo e os cosméticos que uso, agora uso até o final, aproveito muito mais e me cuido muito mais justamente porque tendo poucas coisas eu lembro de tudo que carrego, vejo as coisas, aproveito melhor o que já tenho. 

Nesse momento, depois de 4 meses de Brasil, troquei algumas peças de roupa, comprei novas e deixei outras pra trás. Estou com mais peso de quando cheguei. Que a Deusa me ajude na hora do check-in!

- Sobre roupas: observei nesse tempo que o nosso estilo e gosto mudam muito mais rápido nessa vida itinerante. Isso se dá porque viver assim é mais intenso e a gente se transforma com mais frequência. 

- Sobre a casa: quando eu passo numa loja de decoração de casa eu fico babando nas louças e coisas de cozinha. Me dá saudade de comprar um prato novo, uma xícara diferentona e uma frigideira perfeita. Dá saudade mas logo passa porque sei que terei toda a minha vida pra me dedicar a decorar e curtir uma casa fixa um dia. 

- Sobre as pessoas: é difícil. Tem gente que a gente gostaria de ter perto sempre. Porém, apesar de alguns choros de despedida e apertos no peito, a internet ajuda a aproximar quem realmente quer estar presente. Além disso, quando temos um tempo limitado para estar em um lugar e ver as pessoas, aproveitamos muito mais, com mais intensidade e presença. Quando você não sabe quando poderá estar junto daquela pessoa de novo a gente vive aquele momento como se não houvesse amanhã - e na verdade não há! Essa pra mim foi a GRANDE SACADA DA VIDA NÔMADE. 

Nosso maior apego, ela! O resto é o resto.



2. ANSIEDADE 

Puxando o gancho anterior sobre viver o agora, essa virada de chave foi fundamental pra minha ansiedade. 

Minha ansiedade era maior quando eu vivia uma vida mais "estável" e imóvel. E eu só fui descobrir isso depois de vários meses sendo nômade. Na minha terapia isso ficou claro, era aquela vida de antes que me gerava uma ansiedade imobilizadora. O mais irônico é que antes de começar a ser nômade meu maior medo e entrave era justamente a falsa ideia de que eu ficaria mais ansiosa se eu não tivesse controle sobre tudo e não soubesse o que estaria fazendo daqui um mês. Thank God, eu estava totalmente errada!

O flow do nômade, a lei do viajante, a arte de confiar e deixar fluir ou sei lá como você queira chamar, realmente existe. Funciona. Te guia e te protege. É inegável e eu sou absolutamente grata à isso. 

Atualmente nem estou tomando mais meu remedinho homeopático receitado pelo médico pra ajudar na ansiedade. Já não está fazendo falta. 

Obvio que nem tudo são flores, tem horas que ela vem e bate na porta. E eu tenho que deixar entrar porque se não ela derruba a porta mesmo. Normalmente ela bate quando estou de TPM ou próximo à data de um voo. SEMPRE bate uma ansiedade pesada nos dias anteriores da viagem. Os gatilhos são vários. Mas ainda assim prefiro lidar com esse tipo de gatilho que com os de antes. O que me espera do outro lado me motiva!


Vista do nosso edíficio no coração de Sampa.



3. DESROTINA

Era o menor dos desafios no início, hoje ela é meu grande caso de amor e ódio. Hoje meu maior desafio é não ter rotina. No começo era maravilhoso porque contrastava com a vida anterior, então era um frescor, uma liberdade inigualável. Agora... essa desrotina é nossa realidade. Não poder me inscrever numa escola de dança, não saber como será a próxima casa, se a cozinha vai me inspirar a cozinhar mais ou menos, se tem bons restaurantes saudáveis no bairro, se o mercado fica perto, se vou ter um espaço legal pra praticar minha yoga, se vou conseguir conciliar bem meu tempo entre compromissos, descanso e passeios pelo lugar, etc. Tudo isso influência nas atividades rotineiras. Mudar de lugar constantemente quebra essa "programação" mental. 

Recentemente tomei a decisão de ver um nutricionista que me acompanha virtualmente com metas reais. Ter alguém ali e ter um mapa pra cuidar da alimentação acredito que vir a ser um turning point para conseguir viver um nomadismo mais saudável já que ganhei 3kg desde o início.

Esse ano estou comprometida a ir fundo nessa questão pra tentar minimizar os impactos negativos de não ter rotina. Para quem está empreendendo e tem uma equipe internacional em diferentes fusos, com metas e compromissos, o desafio é ainda maior. Não ter chefe é ótimo mas também pode ser um tiro no pé. E sem a grana que o trabalho traz, não tem nomadismo, não tem nada. 

Por outro lado, poder subir ao Cristo Redentor numa terça-feira de tarde porque o dia estava muito perfeito pra não ir, ou escapar na hora do almoço pra ir à praia e almoçar num lugar diferente, não tem preço. A desrotina é, também, o grande tesão da vida nômade.

Terça-feira à tarde levando ele pra conhecer o Cristo!



Para concluir essas breves reflexões de uma nômade que ainda está começando e aprendendo muito, posso afirmar e assinar embaixo que esse estilo de vida me estimula absurdamente. Me inspira a estar presente. Me faz viajar pra dentro. Muita gente acha que estamos 'fugindo' de algo... quando o que realmente estamos fazendo é dar um mergulho profundo nas nossas almas, tomando altas doses de presença, de emoções, de gente, de paisagens lindas, de novos cheiros e cores, enfim, boas doses DE VIDA!

Amo ser nômade e amo o fato de eu permitir que meu corpo e mente sejam tão livres quanto a minha alma!








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